sábado, 12 de novembro de 2016

aoquistochegou

Um blog do Dr Santos Silva.

santosilvaHoje passei por lá de novo. E, no meio de uma prosa um pouco anárquica, descobri o sentido crítico de um cidadão com sensibilidade social. Fica aqui uma pequena homenagem a esse grande professor.

http://aoquistochegou.blogspot.pt/

Este Blogue que vos Deixo (16)

Uma estação meteorológica

figueira_branca_1_1Está mais que sabido que, quando os americanos dizem que vai chover, chove!! (Não, não me refiro à eleição do presidente, que este blogue a tanto não se eleva, e sim à mera e prosaica condição atmosférica). E se dizem que vai fazer frio é porque vamos tremer o queixo e queixarmo-nos disso. Os serviços de meteorologia americanos guindaram-se a uma posição de credibilidade que rejeita dúvidas.

O mesmo não aconteceu por volta do ano de 1950, em Portugal, numa aldeia (a que, não sei por que preconceito estúpido, sempre recuso afirmar que é a minha) muito perto de Coimbra, em que dois dos seus habitantes resolveram criar um serviço meteorológico para os agricultores, na linha do verdadeiro borda d’água, mas para melhor.

Aquecidos por alguns marqueses que emborcaram no Sr. Henrique, traçaram logo ali a estratégia do serviço: havia uma velha figueira no quintal deste vosso amigo, suficientemente alta para lá instalar o observatório. Não foi ventilada outra alternativa. O Moisés Botico foi quem subiu. O outro, o Palhais, ficaria em baixo, a registar o que lhe era sugerido  lá de cima, através da observação sistemática dos sinais dos tempos. É assim que se organizam estes e muitos outros serviços: um vê e o outro trabalha.

“Tal dia dá chuva! Aponta Palhais”. E o Palhais pegava no lápis de carpinteiro (era a sua profissão), molhava-o na língua e escrevia então que dava xuba ou garniso, ou bentania, ou trabuada…

Uma figueira velha, um projecto ambicioso, três marqueses e um escorregão ditaram a sentença. Era o fim do Acompanhamento Meteorológica para os Agricultores  da Região da Gândara ( o AMARGA).  O  Moisés veio por aí abaixo aos solavancos, amparado aqui e ali pelos figos, até se deter cá em baixo sobre um montão de agulhas e demais folhas, destinadas à cama dos porcos e das vacas da quinta.

“Acho que a ideia da figueira para observatório não foi suficientemente amadurecida” – diz o Moisés, ainda torto…

(Para que vos escrevo estas coisas? – perguntam vocês. Ora, para vos dar notícia de quão empreendedora era a minha aldeia, muito antes da moda das estrangeiradas empreendedorices de agora… )

domingo, 30 de outubro de 2016

um cão em construção

cachorro cestaTinham-no adestrado bem. Ensinaram-lhe a ir ao supermercado buscar compras. De cabaz na boca fazia aquele percurso havia anos, talvez décadas. No fundo do cabaz uma nota de banco e outra escrita pela dona em caligrafia tortuosa. Na volta, um cabaz cheio de coisas boas, babadíssimas… Foram anos de dever cumprido sem esmorecimento, sem uma tentação.

Ontem, pelas 11 horas da manhã, viram-no, como sempre, entrar no supermercado, a sua felpuda cauda alçada de alegria e depois sair, exactamente na mesma garbosa e heroica atitude. Porém, alguns rápidos passos decorridos, o admirável cachorro lobrigou algumas cadelinhas simpáticas que o cumprimentaram cheias de dengue, ternura  e charme. O velho cão largou então o cabaz sobre o passeio, convidou para o banquete três vira-latas que por ali passavam (e nunca tinham engolido uma refeição daquele requinte), foi, cheio de salamaleques, cumprimentar as donzelas e nunca mais ninguém o viu.

Ainda hoje ninguém sabe dizer ao certo, nem mesmo a polícia, se o admirável ancião fez aquilo por senilidade ou por rebeldia…

sábado, 1 de outubro de 2016

O poder está na rua

Resultado de imagem para 25 de abril- O poder está na rua, caramba! – troava esbaforido, em 75, um reaça peçonhento lá dos lados da Trafaria. – Aquilo ali é Cuba! ou pior, é o Kremlin.

- Pois que fique na rua! – volvia eu. –Se há lugar para o poder que seja a rua.

Apesar dos meus perfeitos 24 anos, a rua era, para mim, a minha rua. Era o Ti Caneco, que adormecia a ver os palhaços, e se debulhava em etílicas lágrimas a ouvir Que povo é este, que Povo?: era o Zé da Léria que dizia apreciar, muito mais do que o humanamente sustentável, aquela sombra triangular que as mulheres carregavam por baixo dos umbigos;  era a Ti Maria Moça, contadora de causos, mulher forte, viril, musculada e energética, mais macho que o Zé da Léria; era o senhor Henrique, o único que ostentava o prefixo de Sr, porque falava aos domingos, nos tablados dos protestantes e era uma espécie de secretário-geral da palavra de deus; e eram os cachopos da minha idade, dotados da dupla função de aterrorizar o sacristão, quebrando os vidros da sacristia e de se borrarem de medo da guarda nacional republicana, quando ela, inesperadamente, surgia por trás da baliza.

A rua que deveria ser empossada de todos os poderes era esta – a minha.

domingo, 11 de setembro de 2016

este blogue que vos deixo

O primeiro jacto

jato… e, de repente, surge no anil do verão aquele risco branco. Os homens pararam a lavoura. Mulheres benzeram-se e caíram por terra. Crianças romperam numa gritaria de fim do mundo. O coroinha foi tocar o sino a rebate. 

Era o fim do mundo, de facto. Aquele traço azul, a dividir hemisférios, não era menos que o dedo paráclito a riscar a giz qual deveria ser o lado dos justos e qual o dos pecadores. Dali foram logo a casa do velho prior que, como todos os velhos priores, estava de palito na boca e cheiro a cebola e vinho.  Olhou também para o céu e lá estava ainda, agora esvaindo-se num fumo esbranquiçado, o traçado dessa nuvem longilínea tão inesperadamente presente, tão irritantemente inoportuna, cuja aparição não constava dos anais da módica sabedoria do padre nem dos registos do Pentateuco. O padre achou, de facto, melhor, fazer uma missa rápida, e entrou na capela, seguido por todos, sob as estridentes badaladas do sacristão.

- Cala-te aí um pouco, ó Zé, e desce daí para a palavra de Deus.

E foi ali, naquele arrastar de latim e de lamúrias, que todos prometeram ser pessoas melhores, deixar intacta a leira do vizinho, nunca mais cortar a água a ninguém e fazer uma peregrinação a Fátima, a pé, se aquilo não fosse o fim dos tempos e se o Criador lhes desse mais alguns anos de vida.

- Há-de dar, há-de dar – disse o farmacêutico que, entretanto, se aproximara a ver que coisa estranha se passava ali, aquela atabalhoada missa tão a desoras  – há-de dar, senhor prior, há-de dar, porque aquilo ali no céu é, apenas e só, um avião a jacto.

A palavra do farmacêutico, que soara culta e científica, era também agora providencialmente santa, já que proferida e ratificada por Deus, dentro da Sua própria casa. Essas palavras aquietaram de imediato,  todos os espíritos, cujos corpos, descontraídos e bem humorados agora, foram regressando às suas costumeiras actividades agrícolas.

- E o resto da missinha? Valha-me Deus, cos diabos! – reverberou pelos velhos caixotões do tecto a voz roufenha do abade…

sábado, 13 de agosto de 2016

o nacional cançonetismo (1)

O NACIONAL CANÇONETISMO (1)

Carlos Ramos - "Não venhas Tarde"

Carlos Ramos foi um dos mais representativos fadistas/cançonetistas do chamado "Nacional Cançonetismo". O Nacional Cançonetismo era a música urbana que se cantava antes de entrarem em cena os renovadores e cantautores que vão surgir em meados da década de sessenta, servidos por programas radiofónicos como "Vigésima Quinta Hora", "Expresso da Meia Noite" "Rock em Stock" e muitos outros. Obviamente, o nacional canço...netismo designava a música módica, romanticista, bem comportada e inócua que marcou o panorama musical nacional, praticamente até 74. Cuidadosamente filtrada pela censura, as suas letras giravam à volta das coisas do amor romântico, da Família, de Deus, da Pátria e das touradas. É essa música soporífera que vou tentar trazer aqui durante as férias.

Carlos Ramos vai ter honras de abertura. "Não Venhas Tarde", de João Nobre (música) e Aníbal Nazaré (letra), é um fado/canção que nos fala de uma relação bígama, socialmente aceite à época, porém com uma moralidade a indicar o caminho mais abençoado da fidelidade conjugal.
As épocas é que ditam as canções, não são as canções que ditam as épocas. O poema, na sua componente conteudal, não pode, não deve ser analisado hoje com os actuais instrumentos de medida. Mas podemos olhá-lo formalmente e aí sim, saberemos da qualidade do autor da letra, qualidade essa que estava presente em quase todas as boas letras do denegrido nacional cançonetismo. Neste caso, as palavras "tarde" e "cedo" brincam connosco de esconde-esconde. Com alguma mestria, devo acrescentar.

https://www.youtube.com/embed/6Qvr87le6fk

 

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Empreendedorismo e inovação

inovaçao1

Escrever “emprendorismo” em vez de “empreendedorismo” isso é inovação. Inovação dentro da própria palavra “empreendedorismo”. É a moda, meus senhores. Criatividade, capacidade de invenção, enfim, tretas de armar aos cucos. Mas moda, ainda assim.

O meu amigo Seabra pôs-se  a dar voltas ao miolo e disse ter inventado um novo tipo de fósforo, praticamente igual aos outros, mas com a cabeça do outro lado. Mal ele suspeitava que estes fósforos já tinham sido inventados em 1958, no “Cara Alegre” (1) de Maio.

Descobrindo, à minha custa, quão difícil é extrair o vinho de uma garrafa, enquanto ela está de pé, propus que se fabricassem garrafas já deitadas. Este projecto não obteve luz verde que lhes permitisse auferir dos subsídios, mas fui muito aplaudido. Há poucos minutos, encontrei de novo o Seabra. Esteve ontem em Lisboa onde alguém resolveu transformar velhos frigoríficos em estantes com livros. Tratava-se de incentivar a leitura em vez da bebida. O desejo secreto do meu amigo amigo Seabra ao abrir a porta era que de lá caíssem duas ou três minis. Não. Saiu de lá o Crime do Padre Amaro e o Diário de Anne Frank, obras certamente mais culturais que uma superbock, mas muito menos húmidas.

Estes projetos são extremamente úteis á vida em sociedade e ao desenvolvimento económico do país, porque vêm todos em Inglês. Perguntado acerca da importância e objectivos de um certo projecto muito em voga, um entrevistado da Antena 1 respondeu assim: “O objectivo mais importante destes projectos é o ‘networking’. “Poderia clarificar um pouco melhor (visto que os portugueses são uns labregos que não entendem nada de Inglês técnico)? “Claro, trata-se de pôr as pessoas em contacto, de modo a encontrarem-se e conhecerem-se.”

“Caramba, mas isso é um jantar do Facebook …” – esta fui eu que pensei, eu que não sou nenhum labrego e tenho entre mãos um projecto que se chama Rewinding Asteriscs cujo objectivo principal é produzir gardsavings para a plataforma Modern Expense and Alike. Voila. C’est tout.

(1) “Cara Alegre” revista mensal de humor da autoria d’Os Ridículos”"

Adenda: Fui abrir a porta. Estava lá mais um inovador. A troco de nada, ia fazer com que eu pagasse menos 10 por cento na factura da luz. Olhei para ele. Tinha cara de pessoa honesta. E como pode uma pessoa honesta fazer isto com pessoas decentes?

domingo, 17 de abril de 2016

há nove anos…

gelo2… este vosso amigo zangava-se. por vezes. E dava-lhe então para abandonar qualquer jovialidade pueril e falar de assuntos que queimavam os nossos quotidianos. Está neste caso o pequeno texto que escrevi no Tralapraki em 2007 e que espero sinceramente  tenha sido apenas uma manifestação exagerada de um terror imaginado. Terá mesmo?

O texto a que me refiro está AQUI, e chama-se “não direi isto duas vezes”.

sábado, 16 de abril de 2016

Os novos doze apóstolos?

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Francisco carregou doze refugiados sírios para casa. Preciso, desde já, explicar que este post não transporta qualquer lufada de crítica à atitude papal. Muito pelo contrário, esta atitude transforma este papa no primeiro com quem realmente simpatizei e faz dele a meus olhos um político audaz e um estratega brilhante, para além do que eu já considerava que ele era, isto é, um homem muito bom, sábio e inteligente.

O número de refugiados não foi, obviamente, uma feliz coincidência. Antes radica no número de apóstolos que Cristo escolheu para seus seguidores e profetas. Estes doze, apenas doze, e nem por isso lá muito dotados de inteligência e sabedoria, acabaram por se reproduzir em milhões, como sabemos.

Há, no entanto, mais contactos entre a escolha de Cristo e a escolha de Francisco. Também Cristo escolheu os seus discípulos entre pessoas que andavam meio perdidos na vida, pescavam pouco, embebedavam-se com frequência, não possuíam um palmo de terra, não tinham facebook, eram meios marginais, não gozavam da simpatia dos vizinhos e tinham fugido das casas paternas para dormir na rua, por causa da violência doméstica. Cristo pegou neles, falou-lhes aos corações empedernidos, ensinou-lhes a pescar peixe mais graúdo e só não os levou para a sua própria casa, como faz agora o papa Francisco, porque o carpinteiro já era velho e não suportava barulho depois da meia-noite.

O vaticano é imenso, o papa praticamente não os verá mais, mas as riquezas do vaticano e a vida confortável que os refugiados terão lá levá-los-ão a renegar a miséria que as suas religiões lhes trouxeram e a abraçar, sem constrangimento, a religião católica. Só burro não aceitaria esta mudança e isso eles não são, como sabemos.

Depois de bem comidos e bebidos, nutridos no corpo e no espírito, é só semeá-los nas terras da moirama e deixar o fermento levedar… Brilhante.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Desconfio que sou um robot

robotAqui há tempos resolvi comprar uma viola e entrei numa página, armado de entusiamo e cartão de crédito. Antes de preencher o respectivo número, a página pediu-me que provasse que não era um robot, obrigando-me a copiar um número meio borrado, tarefa que cumpri com alguma dificuldade. Pude então comprar a viola, transbordante de felicidade, porque fiquei convencido que pertencia à chusma dos humanos, e não à dos robots, sem compreender, no entanto, o irracional preconceito que proíbe a um robot a simples compra de uma viola. E se, por acaso, este quiser optar por ser seresteiro em vez de, por exemplo, um político bem instalado e sorridente? (Asseguro-lhes que há um robot no museu do Louvre que sorri aos visitantes mais candidamente que o próprio António Costa).

É muita página a desconfiar que sou robot. É, portanto, altamente provável que o seja, de facto. Todos os meus actos, volições e cobardias recentes me levam a pensar isso…

(Mas, se assim é, porque  não fui ainda chamado à governação do país?)

(Imagem devolvida pelo Google sob “Robots”)

1. “o texto primordial” ou “é o primeiro post, que diacho, perdoem, vá lá”

Acreditam muitos que andamos sempre a escrever o mesmo texto. Deus, quando resolveu construir-nos do modo como achou por bem fazê-lo (e não à sua imagem e semelhança, como alguns teimam ter sido), deu a cada um de nós um nome e um discurso. O nome deu-no-lo Ele por interpostas pessoas (os pais, os padrinhos, as amantes, a autoridade tributária, etc.); o discurso foi-nos soprado por Ele para dentro dos nossos miolos e lá ficou a ditar e a controlar as Discursonossas vidas, mesmo as dos que nunca escreveram uma palavra além do próprio nome. Nestes casos, o discurso está implícito, o texto está imanente. E está-o a tal ponto que essas pessoas julgam frequentemente não o possuir, e calam-se amiúde.

Cada um de nós tem, portanto, um único texto discursivo dentro de si, um só, o seu, e não o pode reeditar  ou substituir. Os que acreditam tê-o julgam-se, de um modo geral, felizes possuidores de um atavio exuberante e inédito e escrevem-no por aí, em livros, blogues, pedras e árvores ou sibilam-no fortemente nas nossas orelhas, nas escolas, no vento. Repetidamente, até à alergia colectiva. Por mais que tentem disfarçá-lo, vê-se logo que é sempre o mesmo, apesar das indumentárias de carnaval ou de semana santa com que o ornamentam. Está neste caso este vosso indefectível amigo.

O discurso é um adereço tão íntimo como as cuecas de cada um. Não devíamos evidenciá-lo tanto, pendurá-lo tão patente no estendal da nossa natural jactância*. 

É que, olhando com atenção, qualquer um vê que está mal lavado.

*Este recurso estilístico foi-me ditado por ter acabado mesmo agora de estender a roupa.